segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O misterioso carnaval do Redondo da Praça

Luiz Carlos Marques Pinheiro escreveu um livro virtual de memórias, e o dedicou à cidade natal e a quem no futuro buscar testemunhos dos anos 30, 40 e 50. As lembranças pessoais do conterrâneo, hoje com 75 anos, despertam o sabor e o amor dos pelotenses por sua cidade e pela conservação de suas vivências coletivas (leia o livro completo "A Pelotas que eu vivi: crônicas existenciais", 199 p.).

Um dos 45 capítulos de L. C. Pinheiro (confira abaixo) evoca os antigos carnavais no interior da praça Coronel Pedro Osório. Em janeiro de 2012, José Gomes Neto, outro antigo pelotense, já havia publicado lembranças sobre o falado Redondo da Praça (ao parecer, influindo em parte o texto de Pinheiro, que saiu em 2013): 
      Quem nunca participou de um baile no Redondo da Praça Coronel Pedro Osório, durante o carnaval, não sentiu, ainda, alegria em grau máximo.
      O Carnaval em Pelotas acontecia na rua Quinze de Novembro, no pedaço entre as ruas Tiradentes e Voluntários. A Praça constituía um apêndice ao trecho citado. (...)

      E o Redondo? Bem, esse era um caso à parte. Lá não desfilavam as escolas nem os blocos organizados e sim grupos e indivíduos, que se deixavam tomar pela inacreditável animação com que os bailes transcorriam 
[v. artigo Redondo da Praça, de José Rodrigues Gomes Neto, e Redondo da Praça II, no Pelotas Treze Horas].

O Carnaval do Redondo

Ano 1956. Para quem não conhece, o Redondo é a parte mais central da Pça.Cel.Pedro Osório. Por sua vez, a praça é o ponto mais central da cidade de Pelotas. A praça apresenta oito entradas e no ponto central está o chafariz “As Nereidas”, um presente da França, inaugurado em 1873.

Este chafariz, originalmente, tinha a função de abastecer de água potável a população do seu entorno. Posteriormente, foi construído um tanque externo, em torno das “Nereidas”, para abrigar a água que jorrava da fonte. Esse tanque é chanfrado e, em cada esquina tem um poste. São oito postes ao todo. Esse tanque fica elevado e há três degraus de acesso.

Em torno desse tanque o projeto urbanístico disponibilizou uma área circular (daí o nome de Redondo dado pelo povo), bastante ampla, para o desfrute das pessoas. Em torno dessa área, foram colocados bancos de madeira, tornando o local um ponto muito aprazível e próprio para se reunir, para conversar. Por ser um ponto muito central na cidade, e uma novidade, era muito visado pelos moradores e atraía uma enorme freqüência de famílias.

Passada a fase da novidade pelo Redondo, as famílias começaram a se afastar, porque as prostitutas começaram a frequentar o local, na esperança de fazer conquistas amorosas. Chegou a um ponto em que elas dominaram o Redondo. Eu era menino e a minha mãe fazia recomendações para que eu não cruzasse pelo Redondo, que fizesse a volta na praça, porque era perigoso. Mesmo já rapaz, eu evitava de cruzar pelo Redondo. Cruzar seria mais prático, porque cortava caminho, mas a preocupação existia. Na realidade, as prostitutas não ofereciam nenhum risco. Elas ficavam sentadas nos bancos e nunca tomavam a iniciativa de uma abordagem.

Desenho satírico da Praça Dom Pedro II, reaberta ao público em 1879
(na época, já era usada a expressão "redondo da praça").
No Carnaval, o Redondo fazia o seu próprio Carnaval, característico, que não se confundia com o carnaval de rua da cidade. Incrivelmente, o Redondo não tomava conhecimento do carnaval de rua de Pelotas. Era como se não existisse. Como era um antro de prostitutas, no Carnaval atraía toda a classe baixa de Pelotas. E aqui é interessante fazer uma reflexão.

Quem era essa classe baixa? Os rapazes de Pelotas não era; tinham os seus amigos e, no Carnaval, era muito gostoso sair em grupo. Logo, não iam para o Redondo. Quem era ligado a um bloco, ou a uma escola de samba, também não ia para o Redondo, porque saía com a sua escola. As empregadas domésticas detestavam as prostitutas. A classe média, mesmo a baixa, não queria contato com as frequentadoras do Redondo.

Quem sobrava? Sobravam aqueles que não eram da cidade, geralmente colonos das redondezas que vinham para a cidade pela fama do Carnaval, os solitários, os caixeiros-viajantes de passagem pela cidade, e a rafuagem da cidade. Essa rafuagem eram verdadeiros párias sociais. Eram moradores pobres das periferias mais distantes, sem vínculos com ninguém. Eram chamados de varzeanos, porque moravam nas várzeas alagadas. Como se dizia em Pelotas, “atravessavam em ponte para entrar em casa...” Era a ralé. E todos se reuniam no Redondo. E então o Redondo se transformava num grande salão de baile.

Eu lembro de ir lá, por curiosidade, e o que eu vi foi um Carnaval muito diferente do que eu conhecia. Os homens abraçavam as mulheres por trás e saíam arrastando os pés, cantando, ao som das marchinhas. Todo mundo feliz! Formavam uma roda só, no entorno do Redondo, todos juntos, uma massa compacta, como num bloco de Carnaval. Não havia espaço para se passar...

Sem exagero, o carnaval do Redondo tinha mais características de carnaval de salão do que propriamente de carnaval de rua. Qualquer lugar servia para descansar, a começar pelos degraus da base da Fonte das Nereidas, que ficavam completamente lotados. A sorte é que a praça dispunha de um banheiro público... Jogavam confete e serpentina uns nos outros, mas também era só. Ali muito poucos tinham dinheiro para comprar um lança-perfume. Mas o confete e a serpentina já eram suficientes para deixar forrado o chão da praça. Quando aparecia um lança-perfume, chovia de lenços na volta... para um cheirinho.

A Fonte das Nereidas foi posta na Praça da Regeneração em 1874, sem elevação e rodeada de oito postes de luz.
A estrutura ganhou degraus, mantendo os postes, possivelmente em 1915, com a instalação da luz elétrica.
As prostitutas pouco se fantasiavam. A máscara era a principal fantasia. Mas havia umas poucas que realizavam seus sonhos de bailarinas, colombinas, ciganas, e por aí vai. Entre as poucas fantasias que apareciam, uma das preferidas era a de palhaço e conga, porque é bastante folgada e dá ampla liberdade de movimentos. As máscaras eram as preferidas. Mas não as máscaras que cobriam totalmente o rosto. Assim elas não seriam reconhecidas. As meias-máscaras davam um certo ar de mistério, mais de acordo com o estado de espírito de carnaval, de pierrôs e colombinas. Interessante registrar que as prostitutas gostavam de usar um arranjozinho na cabeça, a título de fantasia. Todas usavam.

Eu tenho dificuldade de entender como é que em Pelotas tinha tanta prostituta. Eu acho que vinham mulheres de toda a redondeza, sabendo que o Redondo era uma grande farra. Virava uma grande confraternização de prostitutas. E provavelmente devia haver um grande revezamento... Quem nunca viu, não imagina o que fosse o Carnaval do Redondo.

No meio dessa bagunça organizada, “conjuntinhos” musicais tocavam marchinhas de Carnaval e sambas, em ritmo lento. O ritmo tinha que ser lento porque os passos também eram lentos. Eu chego a desconfiar que os passos eram lentos por causa do cansaço... Ficavam contornando o chafariz das Nereidas, arrastando os pés e cantando, por horas a fio. Aliás, por dias a fio, porque o Carnaval do Redondo não tinha interrupção. A não ser no período da manhã até a metade da tarde, passava de um dia para o outro. Até o varredor da praça entrava na dança, abraçado na vassoura. À noite, a grama dos jardins servia de cama quando cansavam (“...e hoje nóis pega a páia nas grama do jardim...”- Saudosa Maloca). Dormiam, acordavam e voltavam para o Carnaval.

A Praça da República (foto do início da década de 1920) teve essa denominação de 1895 a 1931.
O atual nome foi uma homenagem ao empresário do arroz Pedro Luís da Rocha Osório (1854-1931).
Não tinha importância que, às vezes, aparecessem dois “conjuntinhos” e tocassem música diferente. Era irrelevante. Ficava um de cada lado do Redondo, afinal, era tudo Carnaval! Havia alguns que levavam o seu instrumento, um pandeiro, um tamborim, um cavaco, e tocavam junto; depois iam se juntando outros instrumentos...

Os bêbados tocavam sozinhos... Aliás, o bloco do eusozinho é clássico no Carnaval. Excesso de bebida sempre existiu, mas nada que perturbasse a ordem. Todos acabavam se ajeitando. Raramente havia uma briga. A bebida também ajudava os carnavalescos a não se darem conta da passagem das horas, e assim o Carnaval virava interminável.

De vez em quando aparecia um “gaiteiro”, de bombacha e guaiaca, boina e alpargata, tocando uma música gaúcha. Ninguém ligava. Era Carnaval. Quando aparecia mais de um gaiteiro, eles confraternizavam e tocavam juntos. Com uma particularidade interessante: gaiteiro só toca música gaúcha, tradicional; nada de carnaval.

Até hoje (foto de 2010) o espaço central da Praça Osório
é foco de reuniões cotidianas, populares e oficiais.
As prostitutas de melhor nível queriam distância da turma do Redondo. Tinham raiva daquelas mulheres que “denegriam a profissão”. A fantasia dessas prostitutas era clássica e se repetia todos os anos. Se vestiam de homem, com uma máscara de pano que cobrisse todo o rosto, para não serem reconhecidas, e se misturavam ao carnaval de rua da rua Quinze. Saíam de casa à tardinha, em grupos de quatro ou cinco, iam para o Centro, e brincavam até de manhã. Mas não adiantava querer disfarçar; o jeito de brincar as traía; brincando na rua elas eram inconfundíveis.

Por volta das dez horas da manhã era chegada a hora do “bloco da limpeza”. Era chamado de “bloco” porque todos os lixeiros cantavam músicas de carnaval e sambavam, enquanto faziam a limpeza da praça. O lixo não era muito variado. Muita serpentina e confete, copos de plástico e tocos de cigarro. No começo da tarde o Redondo já estava limpo...para começar tudo de novo.

Em volta da praça, pelo lado externo da calçada, os comerciantes montavam banquinhas para vender coisas. Reco-reco, confete, serpentina, lança-perfume; havia até bingo, cujo prêmio era sempre um lança-perfume de vidro “Colombina”; e, é claro, bebidas e salgadinhos. A turma do Redondo aproveitava e se abastecia nessas barraquinhas, que ficavam a poucos passos. Iam...e voltavam, porque o Carnaval do Redondo não podia parar.
Luiz Carlos Marques Pinheiro



Imagens: Gigalista (1), A.F.Monquelat (2), Rio Postal (3), ClicRBS (4), Olhares sobre Pelotas (5)

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Vidal,
Agradeço as referências ao meu trabalho sobre o Carnaval de Pelotas. Eu sou um apaixonado por Pelotas. Isso está refletido no meu site, mencionado por você. É um site dedicado exclusivamente a Pelotas, com uma particularidade. Eu só abordo temas sem registro na Internet. O meu objetivo, com essa decisão, é aumentar o conhecimento sobre temas de Pelotas.
Aceite um abraço do amigo Luiz Carlos.

Francisco Antônio Vidal disse...

Sim, por isso citei aqui no blogue esses registros, porque temos o mesmo objetivo, que é informar coisas sobre Pelotas que não estão na imprensa ou não estão relatadas da mesma forma. Eu incluo registros objetivos e também testemunhos mais subjetivos, todos fazem parte de Pelotas e sua posteridade.