quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O lampião fazia o silêncio falar (crônica)

O silêncio é bom filósofo. E conselheiro. Em uma sociedade barulhenta como a nossa, a maioria das pessoas sentem-se desconfortáveis com ele. Geralmente deseja comunicar-se com nosso interior, com o intuito de ouvir-nos e recomendar-nos instantes de reflexão. Entretanto, fechamo-nos a ele, ouvidos atentos ou não aos ruídos característicos da vida contemporânea.

Confesso-lhe, amigo leitor, que gosto muito do silêncio e de estar em silêncio. Criei-me numa zona da cidade onde à noite ouvia-se claramente o coaxar dos sapos nos charcos, o estalar da madeira da casa, o piar da coruja, o vento confessando mistérios às árvores e outros fenômenos causados pela falta de barulho.

Tudo isso reforçado pela luz do lampião a querosene, aumentando o sossego e diminuindo a fronteira entre o visível e o invisível. À noite tudo me parecia mágico.

À cabeça do menino que fui, havia a certeza de que a quietude causava a magia que se desenrolava à minha volta. Sem pressa, quase como num ritual, pegava lápis e papel na tentativa de relatar as sensações oriundas do momento. O relato, em letras praticamente ilegíveis, ia brotando de meu interior, aquecendo-me o peito, tornando o silêncio absurdamente palpável.

Hoje, ao sentir-me sacudido pelas inquietações, fecho os olhos e tento materializar a mesma paz. Aos poucos sobrevém o sossego, o coração se desacelera e sou capaz de ouvir, de forma tímida inicialmente, a sinfonia dos sapos, o piar da coruja, o segredar do vento às árvores, o estalar de tábuas...

E no fundo dos olhos brilha a chama do lampião.
Manoel Soares Magalhães, 19-12-14


Tenho boas recordações do Natal, sobretudo os de minha infância. Tudo era muito simples, a começar pelo presépio, que à noite, iluminado pela chama do lampião a querosene, assumia proporções mágicas. Para tornar tudo ainda mais encantador, eu colocava as mãos à frente da trêmula chama, projetando na parede, perto do presépio, bizarras figuras, que voavam ao redor do berço onde o menino Jesus, recém-nascido, dormia. Eu as observava, dando-lhes estranhos nomes. Gifaboi, mistura de girafa com boi; formicão, cruza de formiga com cão; gapeixe, mescla de gato com peixe e tantas outras.

Na rua, os ruídos característicos da noite, enxameada pelos vaga-lumes. Eu adormecia na janela, vendo-os desenharem na escuridão exóticas geometrias. Triângulos, retângulos, hexágonos, pentágonos, losangos e heptágonos... Figuras que eu conhecera num velho livro de geometria.

À meia-noite, ou pouco antes, tomávamos Coca-Cola e comíamos sanduíche. Acaso estivesse quente, costumávamos ficar debaixo da parreira, em silêncio, ouvindo o escuro.

Para quem não sabe, o escuro fala, sim. Dava-nos conselhos e contava histórias... Narrativas antigas de heróis, santos e santas, reforçadas pelo murmúrio do vento na copa das árvores.

Às vezes o escuro se calava, levando-nos a escutar nossos corações, a perceber o marulho do sangue nas artérias... Se ele não voltasse a falar, íamos dormir. E tudo isso aconteceria no próximo Natal. E no seguinte.

Certa noite, porém, a luz elétrica inundou a casa, dissipando de vez as figuras das paredes, calando também o escuro. E o lampião, que tanta fantasia engendrara, ornando as noites, apagou-se para sempre.
Manoel Soares Magalhães, 24-12-14
Fonte: Facebook
Imagens da web

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