domingo, 21 de setembro de 2014

Foto do Zepelim foi montada em 1957

Capa do Diário Popular, 20-21 setembro 2014
Luís Alberto Elste revela a verdade sobre a foto de 1957.
Em plena ascensão do nazismo, o dirigível alemão Graf Zeppelin realizava viagens da Europa à América, e na tarde do dia 29 de junho de 1934 sobrevoou Pelotas, rumo a Buenos Aires, onde chegou pela manhã do dia seguinte (v. relatos em espanhol). 

Nosso cronista Rubens Amador, menino na época, presenciou o fato e veio relatá-lo na década de 1970. Ele lembra que o aparelho surgiu do nordeste, passou por sobre a praça, fez um longo círculo ou curva e seguiu em direção oeste (v. artigo neste blogue O dia em que o Zepelim sobrevoou Pelotas)

Naquele tempo havia fotógrafos em terra mas não conseguiram uma boa foto, e a notícia foi divulgada, na imprensa escrita, sem uma boa imagem como aquela que se fez famosa 23 anos depois do fato (abaixo). 

Em 1957, a nova foto surgiu do nada, sem maiores explicações, e ganhou enorme aceitação. Inclusive até hoje era tida como um registro histórico, mesmo com aparente distorção de luminosidade, distâncias e dimensões, e com aquela dúvida que ninguém considerou (pois o Zepelim realmente tinha passado perto do Clube Caixeiral e a foto até mostra um ajuntamento de pessoas no meio da praça): 
Se a viagem era do norte ao sul, por que o dirigível parece vir desde Buenos Aires? O dirigível alemão teria feito um rodopio sobre a praça de uma cidade do interior brasileiro?
Pois o Diário Popular acaba de revelar o que o fotógrafo Luís Alberto Elste fez com as imagens que tinha em mãos na época, e por que guardou silêncio desde 1957, há portanto 57 anos. Na reportagem de Diego Queijo, Elste foi fotografado por Paulo Rossi, que também escreveu uma opinião, como especialista em fotojornalismo, sobre a questão das montagens ("Photoshop não é vilão"). Todo o seguinte texto escrito e o vídeo foram tomados do Diário Popular de ontem (20-09), segundo a matéria A farsa que entrou na história.

Na imagem divulgada em 1957, o dirigível aparece rumando para o leste.
O dia 29 de junho de 1934 começou com alvoroço. O telefone do jornal tocava incessantemente. A população queria saber o horário exato da chegada da grande aeronave. Ao longo da tarde, a redação ia recebendo boletins da Companhia Telefônica Rio Grandense e repassando as informações aos leitores. O zepelim LZ 127 esteve em Tapes às 14h50min, no Passo da Pacheca, em Camaquã, às 15h35min e em São Lourenço às 15h52min.

"E num frenesi crescendo de entusiasmo e viva expectativa, os minutos foram correndo até que, precisamente, às 16 horas e 40 minutos, surge majestoso o 'Graf Zeppelin' do lado nordeste", descreveu o DP na edição do dia 30. O dirigível de 236 metros de comprimento "deslizou sobre a cidade" a cerca de 600 metros de altura. Trazia na cauda duas cruzes suásticas, então símbolos da Alemanha comandada por Adolf Hitler.

Fotos não manipuladas do Zepelim
sobre o centro de Pelotas (1934),
cedidas pelo pesquisador Guilherme de Almeida
A história da visita foi ouvida diversas vezes pelo pelotense Luis Alberto Elste, mas durante muito tempo ele preferiu esconder sua relação com o fato. Procurado pela reportagem, este senhor de 82 anos decidiu que seu legado sobre o assunto não seria o silêncio.

Elste começou a trabalhar no Diário Popular aos 19 anos [ao redor de 1951], como auxiliar do fotógrafo Ramão Barros [...]. Um dia, em 1957, ele viu Barros conversando sobre a passagem do dirigível e reclamando por não ter conseguido fotografá-lo direito, pois estava muito alto.
Depois disso me deparei com uma revista com uma fotografia do zepelim impressa, com o céu branco atrás, e pensei: vou fazer uma sacanagem com o Ramão.
Assim, ele colocou a aeronave no céu de uma foto da praça, feita por Barros, e mostrou ao fotógrafo. "Eu disse pra ele que a foto era minha, ele não acreditou, mas achou muito boa."

Mesmo surpreso e incrédulo, Barros decidiu expor a imagem na vitrine de uma ótica na rua Quinze de Novembro. A partir daí, começaram a surgir as encomendas. [Somente] duas pessoas sabiam dessa história: Ramão Barros e o pesquisador Nelson Nobre Magalhães.
Era todo mundo comprando cópias. Se vendeu horrores, aí eu fiquei constrangido de dizer que era uma montagem. Nunca falei porque nunca dei bola para isso, mas hoje a foto é o marco de uma época, e isso foi importante.
O acervo de Luís Elste se perdeu com o tempo. A umidade estragou muitos negativos e ele nunca mais viu a tal revista com o dirigível. [...]
Foto não manipulada do Graf Zeppelin sobre o Parque Centenario, Buenos Aires, manhã do dia 30-06-1934

Ao saber da história da montagem, a coordenadora do Núcleo de Patrimônio Cultural da UFPel, Francisca Michelon, se mostrou surpresa, mas salientou a importância do registro e a beleza da fotografia. [Ela conclui com uma pergunta, que fica pairando em pleno ar].
Nesta foto há uma circunstância curiosa, o paradoxo se afirma: de fato ela parece uma montagem; mas todas as demais fotos de dirigíveis parecem, também. Será que é porque agora, no presente, o dirigível, em si, é uma história e uma coisa singular?
Luís Elste montando uma foto a partir de duas pré-existentes, na arte de Bruce William (DP)
Procedimento de manipulação analógica

1. Havia duas imagens impressas: uma da praça Coronel Pedro Osório (de Ramão Barros, 1955) e outra do dirigível sobre Buenos Aires (impressa em rotogravura nas páginas da revista "O Mundo Ilustrado").

2. As duas imagens foram fotografadas em separado para obter o negativo de cada uma.

3. Depois, no laboratório, ele ampliou uma nova foto através de dupla exposição no papel fotográfico. Primeiro, ele expôs o papel, sensível à luz, ao negativo da foto da praça. Depois, trocou os negativos no ampliador e, no mesmo papel, ainda sem revelar, expôs o negativo do dirigível.

4. Com o mesmo papel exposto aos dois negativos, ele revelou e obteve a imagem do Zepelim sobre a praça.

5. Ao fotografar o resultado, ele obteve um negativo "matriz" da montagem para reproduzir quantas vezes fosse necessário.




Photoshop não é vilão
Paulo Rossi, repórter fotográfico

Para mim a fotografia tem três momentos marcantes. Primeiro, claro, sua descoberta, com a primeira foto fixada por Niépce em 1826. Depois, sua popularização em 1888, quando George Eastman, fundador da Kodak, desenvolve o filme fotográfico e lança o slogan "Você aperta o botão, nós fazemos o resto". E por último, até então, a sua digitalização.

Este processo tecnológico, combinado com os avanços da internet, inundou de imagens nossos computadores. Todos nós temos ou conhecemos alguém com um celular ou uma câmera digital pronta para disparar a qualquer momento e atualizar seu Facebook ou até mesmo captar um flagrante para o jornal local.

O domínio das ferramentas acontece naturalmente. Por que então não usar o Photoshop, que baixei no meu notebook e deixar minha selfie mais atraente? Ou eliminar aquela ruguinha que incomoda tanto? Assim, vemos surgir na rede milhares de fotografias manipuladas digitalmente, com as mais variadas intenções: tornar as pessoas mais bonitas, as paisagens mais interessantes, formular sátiras e brincadeiras, como a do Elste, fazer trabalhos artísticos e até mesmo favorecer interesses.

A mais antiga manipulação: ao redor de 1860,
a cabeça do presidente eleito A.Lincoln foi posta
na foto do ex-vice John Calhoun, morto em 1850.
Mas engana-se o leitor pensando que isso é novidade. Muito antes de existirem os arquivos digitais e softwares de manipulação, fotos já eram adulteradas nos laboratórios fotográficos. Imagens históricas e mesmo fotos jornalísticas atuais são adulteradas visando a diversos fins. Há um grande número delas na internet: de Mussolini em 1942, Mao Tsé-Tung em 1936 e Abraham Lincoln em 1860 [v. 9 montagens históricas no Retronaut e 26 modernas no CNET].

Penso que muitas dessas imagens, principalmente as jornalísticas, menosprezam o valor informativo e são retocadas visando meramente à projeção da imagem, do profissional ou de algum grupo. A foto irá vender mais, publicarão mais, chamará mais atenção.

Por isso é importante que repórteres-fotográficos se questionem diariamente, e mais ainda quando estão no front, no dia-a-dia, naquele momento diante da dor de alguém: o que fazem com a câmera pendurada no pescoço?

E a resposta sempre deve ser: estou aqui cumprindo um papel social, estou aqui denunciando, estou aqui contando uma história, como esta de 80 anos.

Fonte: Diário Popular
Fotos: 
DP impresso, Fábrica de Mosaicos, CaballitoTeQuieroRetronaut 

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