domingo, 26 de maio de 2013

Dois chamados João

Música é vida interior. E quem tem vida interior, jamais padecerá de solidão.
Arthur da Távola foi perfeito nesta interpretação. Mas, segundo esta professora de línguas, leitura é vida interior, e quem tem vida interior, jamais padecerá de solidão!

À semelhança do excelente e longo registro de AMonquelat (dez artigos, de dezembro/2012 a março/2013), que, pela credibilidade de quem o assinou, deve figurar como documento histórico, igualmente fui apresentada a João Simões Lopes Neto (1865-1916).

Desenho de autoria de Mário Mattos, 2005 (v. biografia)
Há mais ou menos 35 anos, em aula de literatura brasileira, uma jovem professora universitária trouxe um texto, de autor gaúcho, do qual emanava a brisa do campo, o ser humano não conspurcado pelas manhas da cidade e que se integrava perfeitamente ao ambiente. Fazia parte da natureza, assim como seu pingo e seu cusco. Via com olhos de ver.
Deus estava no luzimento daquelas estrelas [...] O cachorrinho tão fiel lembrava a amizade da minha gente, o meu cavalo lembrava a liberdade, o trabalho, e o grilo cantador trazia a esperança [...] era luz de Deus por todos os lados! [Trezentas Onças, JSLN]
A natureza flamante de vida! O ser humano em transcendência!

Não falávamos em regionalismo. Analisávamos um dos bons escritores brasileiros. E estou convicta de que o provincianismo e os rótulos aplicados a JSLN, restringiram duramente a divulgação de suas obras e demais talentos. Consequentemente, a percepção do quão abrangente é seu trabalho: como educador, patriota, escritor.

Empresário? Como Érico Veríssimo, Castro Alves, John Keats, tantos e tantos outros, em todos os países, sequer conseguiam manter-se num emprego ou empresar o que quer que fosse, pois seu mundo era muito maior. Fossem pessoas normais, não teriam deixado o legado que, gerações após gerações, os cultuam. Não morreram, não morrerão jamais, permanecem encantados em suas obras.

Na revelação do Antigo Testamento, o gesto criador de Deus é a Palavra. As coisas existem e são o que são porque falamos por um poder instituidor original.

Selo para Rosa em 2008
Leitora assídua e pesquisadora de J.G. Rosa (1908-1967), há muitos anos, seguidamente percebo a intertextualidade, o diálogo entre os textos dos dois Joões. Em quê? Além da coincidência perfeita na estrutura narrativa, principalmente pela linguagem, a qual, deduzo, é uma necessidade temática profunda – uma forma de conhecimento e de interpretação da realidade, em ambos! O vocábulo inédito leva ao âmago das coisas e a revelação de sua essência se faz unicamente por meio desse vocábulo.

Em ambos, há a fusão perfeita entre prosa e poesia. O que valeu foi o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido além das fronteiras em que foi concebido. A expressão regional, pela temática universal, alcançou o cosmo.

A diferença entre os dois está em que Rosa, ao invés de apenas recolher a linguagem coloquial regionalista e estampá-la em sua obra, recria essa linguagem, servindo-se para isso de recursos inusitados, que vão desde a criação linguística pessoal até a mistura artisticamente dosada de vocábulos arcaicos e modernos, nacionais e estrangeiros, eruditos e populares (inclusive gíria e termos indígenas) e ao jogo exótico das palavras na frase, obtendo assim um ritmo personalíssimo e surpreendente.

Ao invés de caracterizar limitadamente o homem do sertão mineiro, dá um sensível toque de universalidade ao enfoque desse homem: partindo das tradições e costumes restritos de um determinado grupo humano, medita tão a fundo sobre isso, que suas postulações passam a ser válidas como tradução da problemática humana em todos os lugares e em todos os tempos.

Rosa e Simões, citadinos cultos, fixaram o momento histórico e o homem do interior, mas o diálogo existente entre seus textos, e muitos outros que as análises cada vez mais intensas mostram e mostrarão, promove a universalidade de suas obras. Os seres rudes, em mundo próprio, retratados pelos Joões, são mergulhados, através dos temas, num horizonte aberto, universal, mas cuja moldura é sempre, em Rosa, o sertão mineiro, e em Simões, a inigualável, apaixonante e solitária campanha rio-grandense!

Loiva Hartmann
Conselheira do IJSLN

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