sábado, 9 de março de 2013

Álvaro Piegas foi repórter policial por 40 anos

Álvaro Piegas foi um dos jornalistas que mais tempo durou no Diário Popular e talvez seja, em toda a história da imprensa brasileira, um dos que trabalhou mais tempo na reportagem policial. Ele entrou em novembro de 1958, como revisor do vespertino "A Opinião Pública", da mesma empresa do Diário, e ficou até em maio de 2001, quando morreu por um ataque cardíaco (leia nota). Na área policial começou em 1960 e não saiu mais. Portanto, foram 42 anos e meio de casa e aproximadamente 41 na cobertura policial.

Prego, maluco perigoso  
O que pode fazer alguém gostar (ou suportar) o trato com crimes e todo tipo de violência, de modo a ficar a vida toda em torno disso, sem ser em si um policial? Será a curiosidade pelo delito, o alto interesse dos leitores, o gosto pela aventura e o risco, a identificação com bandidos ou com a repressão?

O fato é que as informações recolhidas numa única semana já dariam para um livro (veja a notícia sobre abigeatários em Pedro Osório, a reportagem sobre o excesso de trotes, e o caso do assassino que tentou suicídio, estuprador apelidado Prego).

Na internet há citações do nome de Álvaro Piegas como redator mas nenhuma foto. Tradicionalmente, nem redatores nem fotógrafos tinham seu nome identificado com as notícias; hoje, a tendência jornalística é não deixar os repórteres como anônimos, mas antigamente era assim. O único problema é que alguns antissociais esbocem represálias contra o jornalista.

Tânia Cabistany entrevistou Álvaro Piegas para a edição de 110 anos do Diário Popular, em agosto de 2000. A matéria foi reeditada quando da morte dele, 9 meses depois (leia o texto completo). A emoção permanente pode ter sido o motivo para o entrevistado dizer que "não escolheria outra editoria para atuar". Um repórter policial pode passar por sustos e sofrer ameaças, mas também pode contar histórias engraçadas. Veja quatro delas.
Linotipos do Correio do Povo em 1911

  • No tempo dos linotipos, quando faltava luz na Gráfica, parava absolutamente tudo e, mesmo quando a energia elétrica voltava, era preciso esperar um tempo até que as máquinas fossem reaquecidas (com lenha). 
  • Quando ainda as ocorrências eram registradas à mão, certo policial, conhecido como Chico Bóia, era o encarregado de preencher o livro. Piegas ia à Delegacia todos os dias, para buscar as informações. Havia, porém, uma dificuldade com aquele funcionário: era preciso esperar Chico Bóia acordar, pois ele dormia com a cabeça em cima do livro de ocorrências. Quem ousasse acordá-lo, ia para o xadrez.
  • Quando existia apenas uma Delegacia de Polícia em Pelotas e poucos policiais, Piegas diz que assumia o livro de ocorrências, a pedido dos funcionários, que confiavam totalmente nele, para que eles pudessem dar uma saída de noite (fosse por trabalho, fosse por diversão).
  • O repórter policial do DP conta que escapou duas vezes de morrer, pelo simples gesto de levar para os presos, cada dia, leite e pão com mortadela. Em duas diligências em que acompanhava os policiais, foi reconhecido pelos bandidos Zero Um e Chope, que não o mataram porque lembraram que era ele quem levava alimentos para eles na cadeia.
Álvaro Piegas ficou com o mote de repórter policial, mas o jornalista Sérgio Ross diz que tinha uma faceta de grande sucesso: a direção teatral. Veja abaixo o cômico relato (tirado do blogue de Olides Canton). Serginho mostra como a arte, a religião e o delito podem se reunir nas encenações da vida, ainda que involuntariamente. Seria esse o lado melodramático de Piegas, que normalmente não fazia jus ao sobrenome?
O Piegas montou numa Semana Santa, um espetáculo da crucificação de Cristo, no Laranjal. Era uma tarde fria e chuvosa, mas mesmo assim o público foi em massa para a beira da lagoa, assistir às cenas religiosas. Além dos atores principais, ele precisou contratar dois extras, que fizeram de soldados e acompanhavam bem de perto o Jesus, que carregava a sua pesada cruz. 
Semana Santa de 2011: violência contra o Filho de Deus
Receberam então instruções do diretor, para de vez em quando, darem umas chicotadas no pobre do Cristo. Mas como estava frio e chovendo, os nossos guardinhas, irresponsavelmente, em cada parada corriam para os bares que estavam ao longo da cena e bebiam umas cachaças a mais, para esquentar o corpo. 
Resultado: ficaram completamente bêbados e resolveram descontar no pobre Jesus. O ator que fazia de Jesus, lá pelas tantas, não aguentou, largou a cruz no meio da rua e partiu para cima dos seus guardas, chamando eles aos gritos de filhas-da-puta e outros palavrões, nenhum dignos de um Cristo. Os guardas se mandaram, deixando o espetáculo sem eles. Mas mesmo assim o Piegas foi aplaudido como diretor do espetáculo.
A análise das ações de outros poderia dar uma pista da motivação psicológica do repórter pela área policial: observar sem participar, fotografar sem ser fotografado, viver sem matar nem morrer. Mas por que Piegas nunca escreveu uma pesquisa, sequer uma síntese de toda a loucura que anda à solta na cidade?

Finalmente, algo do qual ele não chegou a saber: dois dias após sua morte, o presidente da 9ª FENADOCE dedicou o contrato de patrocínio da CEEE ao jornalista recém falecido Álvaro Piegas (v. notícia). Moveu-se incólume por entre os crimes e terrores alheios, e só se foi porque seu coração não resistiu mais.

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