terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A fantástica fábrica de doces (crônica)

Durante 2011, Fabrício Carpinejar escreveu uma série de reportagens sobre cidades gaúchas, recolhidas no livro "Beleza Interior" (Arquipélago, 2012). As matérias também estão em Zero Hora, no Facebook e no blogue Carpinejar.

O livro pode ser lido como um pequeno manual poético do Rio Grande do Sul. Sobre Pelotas, o escritor contou a história de Anette Ruas, sobrinha da doceira Nilza Ruas (texto abaixo).

Observador psicológico das essências e dos detalhes, o premiado autor de 21 livros sabe elogiar e ao mesmo tempo tocar nos pontos álgidos. Ele diz que no Rio Grande do Sul não há cidades do interior. Todas são capitais. Capital da uva, capital do vinho, capital do calçado, capital do fumo, capital do doce. O chamado interior passa a significar o universal de cada mundo interno.

Carpinejar dará uma oficina literária dias 22 e 23 de fevereiro, em nossa cidade (v. nota).


Um caderninho escolar surrado, sujo de comida, é o maior patrimônio de Annete Ruas, 53 anos. Mais sigiloso do que agenda de adolescente, mais importante do que inventário de morto.

Ela troca o objeto de esconderijo toda semana. Às vezes esconde tão bem que tarda a achar. O conteúdo vale a fortuna acumulada de três gerações.

O caderno de Anette é um mapa da doçura.
Trata-se do livrinho de receitas da família, alma da empresa "Anette Ruas". A verdadeira bíblia do açúcar, com os segredos portugueses de 40 tipos de confeitos, sustenta uma fábrica de 15 funcionários e gera uma produção de cinco mil produtos por dia.

É óbvio que a história acontece em Pelotas, cidade que é sobrenome de doce, onde até existe legislação para evitar a concorrência desleal.

Nas vitrines pelotenses, não vale colocar brigadeiro grande para ganhar a preferência do cliente. Doce de festa precisa ter até 40 gramas e o de confeitaria não pode ultrapassar 70 gramas. O melhor negrinho é sempre o menor, do tamanho de uma unha e que se desmancha na boca. O terceiro município mais populoso do Estado, a 250 quilômetros de Porto Alegre, leva a sério a atmosfera pecadora de claras, gemas, chocolate e massas. Isso explica a preocupação obsessiva de Anette em proteger suas fórmulas.

– Minha biografia são as receitas – comenta.

Mas não espere letra arredondada de caligrafia. A encadernação está acabada, com algumas folhas soltas e recheada de códigos, asteriscos e anotações apressadas. Os filhos de Anette, quando pequenos, aproveitaram a distração materna com as panelas e desenharam caretas, nuvens e sol entre o modo de preparo da queijadinha e do camafeu. Telefones de eletricista e pedreiros e outras emergências aparecem de repente, sem nenhuma explicação.

Anette aprendeu da tia e transmitiu à filha, Cristiane (foto de 2010)
– A confusão é a essência do caderninho, a vida no meio da vida – explica.

O caderno esnobou a amizade da borracha. Um sacrilégio impensável é passar a limpo as informações.

– Assim como é impossível viver sem palavrão na intimidade – compara.

O prazer reside na simplicidade. As rasuras enganam curiosos e dificultam a localização dos tesouros. A receita de quindim, a mais importante, está no rodapé da página, como se fosse absolutamente secundária.

– Quem escreve bonito demais não cozinha bem – esclarece.

De acordo com Anette, não convém separar a vida pessoal da profissional. Ela abriu o negócio em 2001, no casarão do avô Pedro, após desemprego do marido, Renato, no comércio de couro. Assumiu o legado cultural iniciado pela madrinha Nilza há 50 anos. O que veio como um socorro das finanças acabou justificando a precocidade gustativa na infância.

– Debaixo das acácias, aos nove anos, eu colocava chimia de pêssego nos tachos e ouvia as estórias da avó Conceição e da mãe Maria Lopes. Cozinhar é lembrar o quanto já fui amada – confessa.

Dona Nilza Ruas esteve nos inícios da FENADOCE
O amor influencia a rotação das panelas e das mais altas estrelas. Não é lenda: uma noite romântica melhora a qualidade do confeito.

José Antonio, 18 anos, espera que o nome das guloseimas lhe ajude a arrumar a primeira namorada. Já traçou o plano de carreira na fábrica. Começar por beijinho de coco, enfrentar o olho de sogra para terminar bem casado.

O doce exige mesmo romance, já que é feito um por um, com paciência artesanal. Pamela Furtado Armindaliz, 21, bate o cartão um pouco frustrada com a maravilhosa recepção do seu trabalho. Ela pinta os bombons durante horas para serem devorados em segundos.

– Devo entender que não é um enfeite. Quanto mais saboroso, mais rápida a despedida – lamenta Pamela.

Anette dedica a manhã e a tarde ao paraíso da glicose. Nas folgas noturnas, é de se esperar que fique longe do fogão.

Que nada. Seu lazer é fazer figos em calda.

– O doce é meu coração calmo – suspira.
Fabrício Carpinejar


Fotos: RBS, ZH, Annete Ruas e Carpinejar

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