segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Cor local (crônica)

O seguinte artigo foi originariamente publicado no livro Página Dois, de Mario Osório Magalhães, e agora formalmente refeito por seu autor, para este blogue.

Aguardo ansiosamente o retorno de um colega que saiu a passeio. Chega esta tarde de Montevidéu e deverá trazer na mala, entre os seus cachimbos, Simenon, a minha preciosa encomenda. Quer dizer: uma meia-dúzia de livros policiais de Georges Simenon, em edição espanhola, de bolso, em papel jornal.

Hemingway recorda, em Paris é uma festa, que nenhuma leitura o deliciava mais, naqueles tempos de escritor iniciante, do que “os primeiros belos livros de Simenon”. Não duvido que, escritor consagrado, tenha mantido e até reforçado a opinião, mesmo porque Simenon foi crescendo em mérito e quantidade, transformando-se num dos autores mais férteis da literatura universal, com cerca de 300 títulos.

Ando, portanto, em boa companhia. Posso ignorar aqueles que lhe torcem o nariz pelo fato de o escritor belga haver-se dedicado, em parte, a um gênero literário que ainda é considerado, preconceituosamente, menor: a novela policial (ou policíaca, como nos livros espanhóis).

Só lamento é que a Nova Fronteira, que vinha editando a sua obra na proporção de pelo menos um livro por mês, tenha interrompido essas publicações, obrigando-me agora a apelar para a boa vontade de um colega, tornar-lhe mais pesada a mala, misturar-lhe aos próprios os cachimbos de um terceiro.

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Estes parágrafos acima foram publicados no meu livro de crônicas "Página Dois" em 1981 — precisamente há 30 anos. Graças aos sebos, viagens ao Prata e à editora L&PM, que tem dado a lume títulos inéditos de Simenon, desde há cerca de meio ano consigo contemplar na minha estante, no espaço de três prateleiras, a obra completa que diz respeito ao comissário Jules Maigret (todos os seus 76 títulos).

* * *
Nas suas investigações, com frequência o detetive percorre pequenas cidades da França. Lembro-me de que, numa dessas andanças, ele comenta o fato de que os moradores desses lugares têm a tendência de julgar que certos usos, costumes e acontecimentos só se verificam em suas cidades, em nenhum outro lugar do mundo.

Sempre que escrevo os meus artigos relacionados a Pelotas pergunto-me se não estou representando o papel de um dos tais cidadãos observados por Maigret.

Já me garantiram, por exemplo, que não é só aqui que se trata determinado sanduíche de recheada e bolo inglês de quéque; que a passeata do Gato Pelado não é o único caso universal de rivalidade entre dois educandários; que em outros espaços do país também se chama a água que sai da torneira de água da pena.

Ainda assim, para não perder o hábito, indago hoje ao leitor: a não ser na França, em que outro recanto do mundo dá-se a uma funerária o nome de casa de pompas fúnebres?

Onde mais, me responda, os moradores encaminham todos os seus negócios, resolvem todos os seus assuntos num café central e ainda há pouco conheciam as Lojas Brasileiras como Quatro e Quatrocentos?

Não sei o leitor, mas é claro que Maigret murmuraria, entre dentes, mastigando o cachimbo:

Certamente, em outros pequenos lugarejos...

Mario Osorio Magalhães

Imagens:
1 Georges Simenon (1903-1989)
2 Bruno Cremer (1929-2010) como o Comissário Maigret
3 Empresa de Pompas Fúnebres, em Pelotas
4 Magazine BRASCON, antes Lojas Brasileiras e "Quatro e Quatrocentos"

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