segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O boateiro (conto)

O seguinte relato satírico de Rubens Amador foi publicado no Diário Popular de 10 de março de 1984. Era o último ano de governo do general Figueiredo, mas a história se situa vinte anos antes, quando as liberdades eram mínimas. Na época, herói era quem se atrevia a falar em público e ainda sobrevivia.

Estávamos no período mais duro da Revolução. Apesar disto o homem não tinha emenda. Se estivesse em um velório, por exemplo, logo puxava o primeiro pelo braço e ia dizendo, baixinho, com aparente mistério:
— Amanhã o dólar vai triplicar. Esta me veio de fonte limpa!
Em outra rodinha, já dizia que tinha ouvido na TV que o General Normélio estava mobilizando a tropa – sempre olhando para os lados, como se estivesse revelando um segredo de Estado. Se estivesse no futebol, puxava assunto com o vizinho do lado e já lascava:
— Me disseram que ouviram, em Edição Extraordinária, que os americanos estão desembarcando na Amazônia.
O outro abanava a cabeça, solene e grave, e já se virava para o amigo ao seu lado, para passar a última, “de fonte fidedigna”, quentinha.

E assim o nosso personagem ia espalhando boatos na feira, no café, no prado, enfim; onde encontrasse interlocutor, lá vinha ele com “a última de fonte muito autorizada”. O homem se tornara uma espécie de virulenta epidemia de boatos. A tal ponto, que o coronel comandante da Praça da Cidade, informado das mentiras espalhadas pelo boateiro, mandou prendê-lo.

Quando, trêmulo, o fofoqueiro (não passava disto) entrou acompanhado de dois praças no gabinete do militar-chefe, este encarou-o e bradou:
— Então você é que é o famoso boateiro, não?
— Céus, logo eu que sou inimigo de fofocas, meu coronel! Deve haver algum engano.
Aquela contestação lhe saiu com voz diferente da habitual. A boca seca. O militar levantou-se, e foi desenrolando uma espécie de édito da Idade Média, enquanto, lendo-o, minuciava:
— Dia 2, no Café Torrado, às 9 horas da manhã, você afirmou que a Casa da Moeda estava falimentar. Dia 8, no Cine Fagulha... (e narrava novo boato inventado pelo preso.) Dia 17, às 15 horas, na sala do conhecido dentista José Gralha, você deu sua “última quentinha”.

Nosso anti-herói ouvia o detalhado relatório, branco como uma folha de papel almaço sem pauta.
— Mas, coronel... — tentou armar mais um desmentido.
— Tem mais — atalhou o oficial, alteando a voz —: dia 30, no velório do Dr. Teodorico, você falou em certa bomba que iria explodir na praça.
O homem, frente ao comandante militar da cidade, tremia, ante aqueles minudentes relatos dos inventos maldosamente por ele espalhados.
O coronel dirigiu-se aos dois praças que escoltavam o preso:
— Amanhã, ao amanhecer, vamos fuzilar este boateiro inconsequente!
Um forte mau-cheiro se fez sentir na ampla sala.
— Levem-no, e ligeiro! — ordenou o oficial, acercando-se da enorme janela, aberta de par em par.

Cinco horas da manhã. Ouvia-se o cacarejar de um galo. No horizonte, o sol começava a surgir. No pátio da unidade militar, tudo encenado: quatro tamboreiros, sete soldados com seus fuzis ante um tronco de grossa árvore nos fundos do quartel, e que serviria para amarrar o “condenado”.
Tratava-se, já viram, apenas de um susto que o comandante queria dar naquele empedernido boateiro. As próprias balas seriam de festim, de onde só sairiam estampidos, nada mais. A cena, patética e silente! O fofoqueiro tremia feito um “béribéri” na última potência. O coronel desembainhou sua espada e ordenou com voz firme:
— Atenção... Apontar... Atirar!
Assim que os tiros se fizeram ouvir, nosso anti-herói caiu pesadamente... desmaiado, com palidez cadavérica, consequência do susto enorme. Em poucos minutos, porém, já estava de pé, braguilha toda molhada, enquanto o próprio coronel o desamarrava e dizia-lhe, com ênfase:
— Olha, hoje foi só uma encenação, seu fofoqueiro, com os fuzis sem bala, mas na próxima....
— Pode deixar, meu coronel, jamais de minha boca sairá qualquer boato. Juro pelo que há de mais sagrado!
Pelos muros do quartel evolavam-se as risadas da soldadesca.
O mitômano, recomposto e já vestido e humilhado, posto para fora da unidade, caminhava a cerca de quinhentos metros do quartel, quando se encontrou com um padeiro, conhecido seu, na faina de distribuir pães àquela hora da manhã.
— Ezequiel, vem cá, ouve aqui a última!
E, entre misterioso e novidadeiro, falou entre dentes:
— Nosso exército anda pelas “caronas”. Olha, eles não têm nem balas para os seus fuzis... Quem te fala sabe o que está dizendo...
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