sábado, 11 de dezembro de 2010

O Simões do folclore e o Simões da ficção

O pesquisador Luís Artur Borges Pereira publicou, no número de dezembro do jornal da Academia Pelotense de Letras (O Mundo das Letras, ano 10, nº 103, p. 4) um artigo sobre o "Cancioneiro Guasca", a primeira obra literária de João Simões Lopes Neto.

O livro de Simões (leia biografia) foi editado em 1910 pela Livraria Universal, hoje extinta (ficava defronte ao Café Aquários, na esquina da Doçaria Pelotense). Sobre a Livraria, leia a nota deste blogue Edição de livros em Pelotas

Esta edição do periódico da Academia traz principalmente literatura natalina em prosa e verso, textos apresentados num encontro recente dos acadêmicos.

É de se notar, na capa colorida (acima à esq.), o logo em que os prédios tradicionais da cidade (a "igreja cabeluda", o Mercado e seu relógio alemão, à direita) parecem soletrar uma frase do mundo pelotense. Leia abaixo o artigo de Luís Borges.



Uma teoria sobre o Cancioneiro Guasca
Luís Borges
Comemora-se em 2010 o centenário da obra considerada o "patinho feio" da produção de Simões Lopes Neto. Diz-se assim porque não é livro autoral, tratando-se de uma recolha folclórica. Desta maneira, quando o Cancioneiro é comparado à ficção do autor, evidentemente, fica menor.

Tentando conciliar estes aspectos, algumas abordagens procuravam mostrar que Simões era um escritor cuja literatura valia como o repositório das tradições gauchescas, da representação de aspectos do ser moral do gaúcho, da descrição de costumes, hábitos e folclore. Assim, certas dificuldades na compreensão vocabular e estilística da arte literária de Simões Lopes Neto foram superadas através de um artifício: sua valorização como repositório de outros significados sociais.

Reconhecido tardiamente como escritor, de inegáveis méritos, talvez só pôde sê-lo plenamente, na medida em que seu projeto originário fracassou: dedicar-se de várias formas às questões educacionais, fosse no exercício do magistério, propondo reformas ortográficas, escrevendo livros didáticos, empenhando-se em campanhas cívico-educacionais, participando dos Tiros de Guerra ou propugnando atenção à higiene.

Na proporção em que foram se esboroando seus ideais, sonhos e até ímpetos de empreendedor, foi o Velho Capitão direcionando-se para o campo literário. Fez compilações do folclore regional gauchesco e dava a seus contos um caráter de registro histórico, sociológico e linguístico do pampa. De tal modo o Simões folclorista/historiador ficou ligado ao Simões literato, que ele saiu em prejuízo tanto na condição de homem dedicado aos estudos folclóricos e históricos quanto à estrita atividade de escritor.

Quer-se dizer com isso que o popularium recolhido por Simões Lopes Neto apenas aparenta ser obra menor, pois, dependendo da abordagem, vê-se quão meritório é esse paciente trabalho de compilador. Do mesmo modo, vale lembrar que [na fábula] o patinho feio acaba por transformar-se num belo cisne.

Assim também acontece com o segmento aparentemente menos relevante de sua literatura, enfeixada no Cancioneiro Guasca (1910). Ao levarmos a cabo uma avaliação mais profunda desse livro, podemos perceber em quê e por quê os intelectuais do período se preocupavam tanto com o folclore e a cultura popular.

(...) Se compulsarmos as datas de composição do Cancioneiro Guasca e das Lendas do Sul (1913), por exemplo, podemos ser tentados a não associá-las com a fase mais intensa de sua atividade cívico-educacional, isto é, entre 1904 e 1906, quando realizou suas famosas conferências por diversas cidades do Estado. Ora, 1906 é exatamente o ano em que ele compôs um de seus textos mais famosos, considerado uma de suas obras-primas, o Negrinho do Pastoreio, incorporado indelevelmente ao acervo folclórico.

Enfeixada de modo profundamente artístico, a literatura de Simões Lopes Neto pode revelar o ethos do povo, através do qual se identificará o seu "gênio", sua verdadeira alma. Esse conceito é essencialmente romântico; porém, sobrevive em Simões Lopes Neto e Sílvio Romero e outros expoentes da chamada geração de 1870, justamente aquele grupo que mais se insurgiu contra as concepções românticas. Esse aparente paradoxo só pode ser compreendido se entendermos, tanto em Romero quanto em Simões Lopes Neto, o papel do conceito de "gênio", soterrado sob uma retórica cientificista.

Nesse sentido, o Cancioneiro (no qual estavam quase todas as lendas que apareceram no livro de 1913) é o mapeamento do gênio popular gauchesco com fito de estabelecer um projeto lítero-ideológico, promotor de um civismo que possibilitasse um novo projeto de nação.

Patinho feio, que nada!

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